Este é o décimo sexto de nossos Fragmentos filosóficos, uma série composta por trechos selecionados e comentados (sob a curadoria de Marcos Beccari e Daniel B. Portugal), com a proposta de apresentar filósofos em suas próprias palavras. O trecho abaixo foi retirado do livro A educação estética do homem (São Paulo: Iluminuras, 1995, carta IV), de Schiller. Seleção e comentários de Daniel B. Portugal.
O homem [...] pode ser oposto a si mesmo de duas maneiras: como selvagem, quando seus sentimentos imperam sobre seus princípios, ou como bárbaro, quando seus princípios destroem seus sentimentos. O selvagem despreza a arte e reconhece a natureza como sua soberana irrestrita; o bárbaro escarnece e desonra a natureza, mas continua sendo escravo de seu escravo por um modo frequentemente mais desprezível que o do selvagem. O homem cultivado faz da natureza uma amiga e honra sua liberdade, na medida em que apenas põe rédeas a seu arbítrio.
O livro de Schiller citado, composto por 27 cartas, foi publicado pela primeira vez em 1795, na Alemanha. A filosofia kantiana estava provocando uma revolução no pensamento e Schiller foi um dos filósofos que se dedicou a desenvolver de novas maneiras algumas de suas propostas. Um tema importante para Kant é o da oposição entre duas formas de determinação de nossa vontade – de um lado, a determinação natural, que aparece em nossos apetites e impulsos sensíveis de toda espécie; de outro, a determinação moral que aparece em decisões orientadas por princípios, ou seja, baseadas nas leis universais da razão. À medida que determina a vontade para além das causalidades particulares – pois se baseia nas máximas universais e imutáveis da razão –, a lei moral, pensa Kant, prova nossa liberdade. De modo paradoxal, tomaríamos consciência de nossa liberdade justamente ao submeter-nos a leis morais universais ao invés de seguir nossos apetites ou motivos (pois estes, mesmo que sejam “racionais” em sentido instrumental, reconhecem como único fim a necessidade natural em nós).
Para Kant, o caminho do bem é aquele no qual colamos nossa vontade cada vez mais aos princípios da razão e deixamos de lado, cada vez mais, sua determinação natural, sensível. Ou seja, em vez de seguirmos nossos desejos, apetites, paixões, sentimentos etc., orientamos nossas ações segundo princípios morais, regras universais. A autonomia e o bem do humano se mostrariam em sua capacidade de legislar-se pelos princípios morais. Para pensadores de sensibilidade romântica, como Schiller, essa proposta não pode levar ao bem, apenas à fragmentação e dilaceramento do humano. Se levada a cabo, ela promoveria um afastamento da vida: o humano puramente racional seria algo morto, maquínico.
Schiller procura remendar a proposta divisora de Kant. O humano, pensa Schiller, é também definido pela sensibilidade, e, se sua vontade se encontra sempre no jogo entre a natureza e a razão, seria neste jogo mesmo que seu bem reside. Para Schiller, se a razão busca uma soberania irrestrita sobre a natureza, ela coloca o humano contra si, do mesmo modo que a natureza o faz quando exerce uma dominação total. Neste último caso, o homem seria um selvagem; no primeiro, um bárbaro, como descrito no trecho citado. Diferente é o homem cultivado, que “faz da natureza uma amiga e honra sua liberdade, na medida em que apenas põe rédeas a seu arbítrio”.
Schiller, como muitos outros românticos depois dele, pretende restaurar uma suposta totalidade humana que foi perdida devido ao abuso dos sentidos ou (principalmente) da razão. Com sua ideias de cultivo, de arte e de jogo, Schiller pretende encontrar um caminho para a restauração da totalidade do humano, que deveria, segundo o filósofo, ser o objeto de uma “arte mais elevada”.